Em parceria com o autor Vinicius Oliveira Rocha (@escritorvorocha), o Portal Cataprisma está veiculando um texto de sua autoria analisando a obra de terror e ficção cientifica, Nope (Não! Não olhe!), escrita, dirigida e co-produzida por Jordan Peele.
“Lançarei sobre ti imundícias, tratar-te-ei com desprezo e te porei por espetáculo.” Naum 3.6
Se Us (Nós, 2019) já era um indício de que Jordan Peele não estava interessado em se limitar a fazer filmes focados apenas em problemáticas raciais (mas que também não abriria mão do protagonismo negro em suas obras), então Nope cimenta essa decisão de uma vez por todas. Claro, há o discurso dos irmãos O.J. (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer) de que sua família descende do primeiro homem a aparecer em imagens e movimentos, mas ao trazer esta alegação (falsa) às telas, o diretor parece mais preocupado em construir uma articulação entre seus personagens e esta narrativa com a história do próprio cinema e das imagens, bem como da nossa necessidade por espetacularizar quaisquer eventos.
A dupla de irmãos está passando por dificuldades para manter o rancho que herdaram do pai (Keith David), morto em circunstâncias inexplicáveis. Cuidando de cavalos que outrora já foram utilizados em diversas séries e filmes, principalmente em faroestes, eles está marginalizados por uma crise criativa onde o que mais importa são as imagens por CGI e não aquelas “reais”. Coloco a palavra entre aspas porque está claro, desde o início, que Nope é muito mais sobre o poder de se construir a realidade através do imagético e do espetacular. Logo, não é à toa, nem inverossímil, que quando OJ crê ter visto um OVNI, sua decisão e a de Emerald não é de salvar o mundo, mas sim de tentar capturar uma imagem do suposto disco voador e lucrar em cima disso.
Há muito mais em jogo aqui — como a trama paralela de Jupe (Steven Yeun), um ex-astro mirim que presenciou um massacre num estúdio cometido por um chimpanzé e capitaliza em cima da sua dor, além de tentar ao seu modo utilizar a presença do OVNI ao seu próprio proveito. Porém, essa trama paralela e a forma como ela parece tão deslocada da trama principal são talvez os principais sintomas das fragilidades narrativas de Nope, visto que há uma nítida dissonância entre as ambições que Peele almeja em seu roteiro e a execução relativamente simples que ele traz para o filme. Claro, em tempos onde tudo é mastigado para o público é bom ver um diretor que nos permite interpretar e pensar as múltiplas possibilidades que sua obra carrega, mas falta algo em Nope que o coloque à altura da sua premissa intrigante.
Isso não quer dizer que Peele não consiga alcançar o que pretende em diversos momentos. Fico imaginando como esse é um filme que é melhor apreciado no cinema, dada a sua abordagem sobre as imagens e o cuidado visual que o diretor traz aqui, criando todo um senso de mistério e uma gradativa revelação da aparência do OVNI (que deve ter um dos visuais mais incomuns da história da ficção científica), de forma que as influências de diretores como Spielberg e Shyamalan são perceptíveis. Diria inclusive que o poder de Nope não é apenas imagético, mas também sonoro: às vezes ouvir é mais assustador do que ver, e em seus dois primeiros atos o filme é completamente ciente disso, até culminar em um terceiro ato que, esse sim, satisfaz as ambições pretendidas por Peele ao construir um clímax visualmente grandioso que é talvez o melhor da sua carreira.
Entre diversas homenagens e referências, Nope é um ótimo exemplar do cinema de gênero, saltando com fluidez entre o faroeste, ficção científica e terror. No entanto, é também o mais irregular dos três filmes de Jordan Peele até aqui, prejudicado por uma execução que, embora primorosa, está aquém de suas ambições, além de uma duração que se prolonga por talvez mais do que devia e a subutilização de certos nomes do seu elenco (em especial Michael Wincott). Entretanto, é inegável que o diretor é um dos nomes mais criativos e fascinantes dentro do cinema mainstream, capaz de ir além de qualquer expectativa estereotipada que se pudesse ter em torno dele — um diretor negro fadado apenas a fazer filmes sobre racismo — para entregar o inesperado a cada novo longa seu.