A conceituação de certos gêneros textuais às vezes pode ser uma tarefa um tanto complexa quando tirada da teoria, visto que na prática os gêneros conversam entre si, flertam e até se mesclam, dando origem a outros.
Pesquisando sobre gêneros, em especial o Terror e o Horror, me deparei com a seguinte fala: “o Terror nada mais é do que um Suspense com elementos sobrenaturais”. É uma opinião um tanto polêmica, para não dizer absurda, pois existem diversas obras de Terror que não utilizam os elementos sobrenaturais. Mas a fala me fez refletir sobre a conceituação dos gêneros.
Digamos que determinada pessoa, religiosa e crédula, seja sensível ao tópico de possessão. Um filme que aborde a temática, trazendo a agonia da tensão crescente adicionada ao medo que o espectador já carrega de sua vivência, com certeza irá aterrorizá-lo. Mas, por outro lado, se o espectador for completamente incrédulo, a obra alcançará o mesmo efeito? O filme seria de Terror para um grupo e de Suspense para outro?
Bom, para a última pergunta a resposta seria um sonoro não. Em uma conversa, o Filipo Brazilliano trouxe a importância de suspender certas descrenças ou verdades absolutas para realmente imergir na obra que está sendo consumida, caso contrário o leitor/espectador pode se tornar aquela pessoa chata que consome uma obra de fantasia e fica repetindo: “Que mentira! Unicórnio nem existe!”
Apesar de causar estranhamento, exercícios de reflexão como o descrito acima são proveitosos para entender não somente sobre esses gêneros citados, mas também para compreender a grande gama de gêneros que se transformam ou se ramificam ao longo do tempo, como eles se relacionam e o porquê de nos afetarem mesmo sendo incrédulos.
Recentemente passei por um momento constrangedor. Eu estava no TikTok e vi um vídeo onde um homem dava entrevista para um repórter, mas de repente o entrevistado passou a agir de uma maneira animalesca, cheirando e rosnando para uma mulher ao lado. Assustada, ela fugiu, e o homem correu atrás. Primeiro, ele correu normalmente, mas logo passou a usar as mãos, se tornando um quadrúpede. Era uma montagem tosca e provavelmente muitas pessoas riram daquele vídeo. Mas eu, não. Mesmo sabendo que não passava de uma edição muito ruim, dormi com a luz acesa naquela noite.
O motivo para essa reação intensa mesmo sabendo que era montagem? Bom, o vídeo me colocou em contato com medos de infância. Não importou se eu acredito ou não em pessoas que se tornam quadrúpedes. Se um vídeo curto de internet consegue mexer tanto com alguém, muito mais impacto tem a literatura, que constrói toda uma narrativa de modo que o leitor se aprofunde naquela realidade e suspenda a sua por algumas horas.
Ainda sobre como algumas obras são conceituadas em certos gêneros, é importante ter em mente que o mercado pode classificá-la de acordo com seus interesses, pois o público de certos gêneros pode ser um tanto restrito e, por isso, a indústria pode anunciá-la como pertencente a um outro também presente na obra para alcançar um público maior.
Saber um pouco do contexto histórico também é fundamental. Sobre o Terror, observa-se que narrativas religiosas antigas, como a própria Bíblia, trouxeram monstros ao conhecimento dos fiéis, como por exemplo no livro de Apocalipse, onde temos o anúncio do fim dos tempos repleto de bestas. Também, durante a catequização do povo pela Igreja o medo foi uma peça importante para ensinar às comunidades os caminhos que a religião queria que se afastassem, quando passam a demonizar outras divindades pagãs, outras formas de pensar e cultuar.
Outro ponto a se observar é a maneira como as narrativas épicas foram construídas: os heróis não deveriam sentir medo, deveriam ser valentes e enfrentar o perigo acima de tudo, pois aquele que cedesse ao sentimento seria nomeado covarde. Na verdade, a apreensão que muitos sentem de serem ridicularizados por sentirem medo é constante até hoje.
Talvez por isso o gênero Terror tenha sido marginalizado. Claro que somado a essa aversão ao medo existem os preconceitos contra os elementos utilizados nas narrativas aterrorizantes, como monstros e demônios, vistos em nossa cultura majoritariamente cristã como histórias sujas ou que podem atrair “coisas ruins” para a casa de quem permite tais narrativas. Quem nunca tomou uma bronca da mãe ou da avó quando figuras demoníacas passavam na tela da TV? Eu, particularmente, já recebi olhares tortos até mesmo vendo o episódio de Chaves em que a Dona Clotilde chama por seu cachorrinho Satanás.
Para essa vontade de envolvimento com o Terror, existe a hipótese de que o sentimento de medo sempre foi tão presente e essencial à vivência humana que ainda hoje, num mundo onde a maioria das situações são previsíveis e controladas, temos a necessidade de entrar em contato com essa emoção “primitiva”.
O Terror é, então, o gênero que traz a antecipação, o medo, o sentimento de perigo e a vontade de correr. É o que nos dá a vontade de gritar com a tela implorando para a personagem fugir. Nele, nossa mente tem a liberdade para criar as mais pavorosas imagens, suscitar os maiores medos e traumas que nos permeiam. São os nossos demônios internos sendo projetados na obra que estamos consumindo.
No consumo do medo, também temos o Horror que é usado erroneamente como sinônimo de Terror.
Para ficar bem claro, digo que Terror é quando a mãe fala que tem um pressentimento ruim antes de o jovem sair de casa e a mente dele cria as mais aterrorizantes cenas, mesmo teimando sair. O Horror é quando esse mesmo jovem percebe que o carro em que estava com os amigos capotou de um penhasco porque uma figura demoníaca apareceu na estrada e agora todos os seus amigos estão mortos, e, talvez, tenha uma perna arrancada de um deles cutucando sua orelha esquerda, enquanto no porta-malas um pente de ovos está completamente intacto porque um dos amigos disse para a avó que o carro já estava cheio e Jesus deveria ir naquele compartimento.
O Horror é o que acontece depois, é a repulsa e a aversão.
O acadêmico Oscar Nestarez cita Mark A. Fabrizi, no trecho em que diz que “‘o horror oferece a catarse’” — uma afirmação, aliás, feita reiteradas vezes por Stephen King”, em sua tese de doutorado: Uma história da literatura de horror no Brasil: fundamentos e autorias. Declaração importante também para entendermos o apelo do Horror e o porquê de consumir o gênero.
Ainda segundo o acadêmico, o Horror oferece essa catarse porque os leitores/espectadores criam um sentimento de empatia ainda maior quando se deparam com personagens que passam por situações de medo e perigo, vivendo com eles todas as emoções até chegar ao momento de alívio.
O Horror nos faz ver o resultado daquilo que sempre nos aterrorizou, a pior hipótese virando realidade bem na nossa frente, e sendo superada — ou não — nos momentos seguintes. A catarse, ou seja, a libertação e o alívio psíquicos é entender que tudo acaba. De um jeito ou de outro, tudo acaba.
Como dito no início do texto, os gêneros se ramificam, se transformando em subgêneros. No Terror temos os subgêneros mais conhecidos, como o Psicológico, o Sobrenatural, o Cômico e o Slasher. No Horror, temos o Cósmico, Gore, Queer. E eu pretendo destrinchar melhor num próximo texto.
Enquanto isso, não deixe essa conversa morrer! Vamos continua-la nos comentários? Conta pra mim quais são os subgêneros do Terror e do Horror que mais te atraem?
Artigo escrito por Maurylia Loureiro
Arte de vitrine por Filipo Brazilliano