Resenha: Varejeiras, de Tatiana Faraújo

 
Em parceria com Cíntia Alves (@lunaccan), o Portal Cataprisma traz a vocês a resenha de Varejeiras, um conto de Tatiana Faraújo (@tatiana_faraujo) publicado na edição 01 da revista Noturna (@revistanoturna).
  


Sinopse: A casa de Magda permaneceu fechada depois que João Pitú fugiu de madrugada. A população de Sucuri sabia que o homem era violento com a esposa. Magda não deu as caras. Será que ela estava bem? Como disse Dona Silvana, lá da vendinha: “Não sei. Eu não me meto mais”. Essa era a resposta típica de Sucuri. Quando esse silêncio de cumplicidade com o mal deu lugar ao zumbido das moscas, as mortes se alastraram e a cidade reagiu. Diante da extinção da cidade, eles tomaram a atitude mais burra e estúpida possível. Afinal, tinham que manter a tradição. - Essa sinopse foi retirada do episódio 05, temporada 03, do podcast Pindorama, onde se comenta o conto da Tatiana Faraújo.
 
Sucuri é a típica localidade pacata encontrada pelos interiores brasileiros, lugar  materialmente atingido pela modernidade em seus diversos formatos, mas estagnado quanto ao avanço dos costumes, liberdades e lutas. Por manterem inalterados antigos hábitos, nos quais a permissividade existe somente em detrimento de se manter o que foi estabelecido por "correto" em um passado não tão distante, locais assim tendem a camuflar abusos e a silenciar vítimas, confinadas às prisões de suas próprias residências. Vítimas, em sua maioria, mulheres. 
 
Não digo que este seja um cenário exclusivo de cidades do interior, longe disso, mas Sucuri ilustra o tipo de lugarejo que qualquer um de nós conhece bem. A vizinhança que compartilha não apenas o conhecimento sobre a rotina de determinada mulher agredida pelo companheiro, mas também a indiferença a respeito da situação; que comenta sobre as traições de certo marido, obviamente culpando a parceira; ou mesmo que sepulta entre muitos conjuntos de quatro paredes os mais aberrantes abusos aplicados à filhas, mães, namoradas e esposas. Observe que existe certa obviedade no padrão aqui. 
 
Tatiana Faraújo não apenas ambienta seu conto no tipo de cidade perfeitamente crível a quem convive com a acidez da atualidade brasileira, a autora também recria personagens espelhados em uma realidade quase brutal. À tal mistura, são atiradas boas doses de insólito e fantástico, muito por meio das inconvenientes moscas varejeiras. Aliás, Faraújo foi de uma perspicácia notável ao utilizar os insetos como protagonistas de seu conto, afinal, o que incomoda tanto quanto o zumbido incessante de uma mosca ao pé do ouvido? Uma mulher exercendo a sua liberdade, quem sabe? Mais que isso, só se pensarmos em centenas, milhares de moscas denunciando o que há de podre oculto atrás de portas, no interior obscuro de cômodos e muito bem velado no (in)consciente de muitos. 
 
As impertinentes Moscas Varejeiras, invasoras da localidade de Sucuri, são perfeitamente antagonizadas pelo calor opressor que se abate sobre a região, tanto fomentando o surgimento dos insetos quanto proporcionando permanente e inevitável incômodo, parcamente aplacado por cansadas hélices de ventiladores já capengas. Essas duas "forças" funcionam bem em representação às sensações de opressão e incômodo inerentes às relações abusivas retratadas durante toda a narrativa. 
 
A origem das moscas responsáveis pelos bizarros acontecimentos registrados em Sucuri não poderia ser mais legítima: a residência decadente de uma mulher desaparecida, diga-se de passagem, desde que o companheiro violento deixa a cidade sem prestar maiores esclarecimentos. Sumida  dentro da própria casa, já que vizinhos e amigos sequer consideraram averiguar a origem da podridão responsável pela nuvem de moscas que em breve se apossaria da cidade, a moradora recebe da população sucuriense tão somente orações, fogo e suposições. Às moscas oriundas da casa infestada e intocada, apenas se administra veneno em quantidades industriais como uma "solução" que termina por eliminar bem mais que o desejado, finalmente transformando  Sucuri em local verdadeiramente seguro para se viver. 

Conheça a autora Tatiana Faraújo

Pernambucana do lote de 96, Tatiana Faraújo escreve ficção especulativa sobre pessoas por quem ninguém colocaria a mão no fogo. Participou de antologias de ficção especulativa em 2021 e revistas literárias como a Perpétua, Pulpa, Noturna e a Ignoto. Vencedora de um Rocket Pages, participou do anuário da Rocket Editorial. Publicou de forma independente, no mesmo ano, o romance de sci-fi “Vermilion”, junto com o conto espacial “Não era mais o mesmo, mas estava em seu lugar” e a antologia de terror “Peixe porco paulo”.




Acompanhe o trabalho da autora aqui @tatianafaraujo


Quais dificuldades superou em sua jornada pelo cenário literário?

Acho que temos dois tipos de dificuldades enquanto artistas: 1) dificuldades internas; com a gente e a forma como a gente encara o nosso trabalho e 2) dificuldades externas que são aqueles perrengues do mercado. As que são nossas acabam sendo mais “fáceis” de trabalhar e superar porque estão mais ao nosso alcance e acho que nesse sentido eu superei o medo de publicar o que escrevo. Era algo que sempre vinha com a sensação de ficar "pelada" no meio da multidão por expor coisas que são importantes demais dentro da minha cabeça misturadas com as histórias que eu conto, então acho que é nisso que eu estou tendo o maior sucesso: parar de me envergonhar do que me move e encontrar as palavras pra expressar tanta coisa que eu sinto e penso.

Quando a gente fala de dificuldades externas, ou no mercado, é mais difícil porque não depende só da gente. Como qualquer outro mercado tem aquelas regrinhas que aos poucos você vai vendo que faz diferença se você segue (risos) acho que, atualmente, o que eu mais tento superar é o quão difícil a gente encontrar visibilidade e conseguir gritar no meio de uma multidão que também tá gritando pra destacar o nosso trabalho. Às vezes isso faz a gente enxergar nossos colegas como se tivesse numa competição e fica mal quando não alcança alguma coisa que parece fácil pra outros e acaba esquecendo que aquelas pessoas também ralaram muito pra chegar ali, sabe?

Uma das dificuldades diárias que enfrentamos é aprender a dançar conforme a música do mercado editorial preservando a essência do nosso trabalho, pois precisamos transformar nossa obra num produto atrativo sem perder a identidade no processo. A gente se vê muitas vezes nessa situação, tentando não deixar que aquilo que produzimos se torne uma receita de bolo onde ninguém encontra nossas características e personalidade.

É uma busca constante achar uma maneira de tornar nosso trabalho atraente sem perder a conexão emocional que temos com ele. É importante transformar algo significativo para nós em um produto que desperte interesse, mas sem deixar de lado nossos sentimentos e individualidade. A gente acaba tendo que equilibrar esses dois e sinto que é o tipo de desafio que a gente nunca para de enfrentar.

Você acredita que a escrita é uma forma de expressar sua própria identidade? Em suas obras há elementos autobiográficos ou personagens que refletem sua visão de mundo?

Acho difícil que alguém escreva sem expressar mais de si do que gostaria, mas também acho perigoso dizer que um autor só escreve sobre aquilo que ele é - além de dar espaço pra acusações absurdas, também acaba criando a necessidade de um didatismo excessivo do autor pra explicar que não é porque um personagem acredita em X que o autor acredita. Eu gosto de brincar dizendo que meus personagens são um vaso pros meus traços menos amáveis serem testados em situações diferentes até eu encontrar uma onde eles se tornam aceitáveis, então o que quer que tenha de autobiográfico no que eu escrevo não vai estar explícito. É uma pegadinha.

O terror tem algum papel ou função dentro da sociedade contemporânea? Como você acredita que escritores independentes podem contribuir para um diálogo social e a reflexão crítica sobre questões importantes?

Acredito que a função social do terror continua a mesma de sempre: denúncia. Trazer luz pra o que ninguém quer ver, trazer aquilo que empurramos pras margens da sociedade como os monstros debaixo da cama e os fantasmas que puxam os nossos pés. Entender isso é realmente entregar um trabalho rico no gênero. Autores independentes, por não estarem presos a contratos com editoras grandes, podem falar sobre qualquer assunto sem se preocupar se aquilo vai ser palatável ou se vai prejudicar a editora ou não. É um campo que te dá bastante liberdade nisso.

Tomando emprestado essa questão que ouvi no podcast Covil do Terror, mais precisamente no quadro Café com Ossos, apresentada por Auryo Jhota: O que acha da frase: "o artista reflete seu tempo?", acha que escritores são responsáveis por retratar a sua época ou que devem registra-la em sua arte?

Isso eu já acho impossível não fazer. Não importa se o autor tem consciência de que está produzindo um documento do seu tempo (mesmo com um recorte bem específico) de como pessoas como ele pensam e enxergam o mundo ou não, o documento existe. Por isso perdemos tanto reeditar obras antigas pra torná-las mais aceitáveis para o que acreditamos como sociedade AGORA. Isso é um registro dos nossos antepassados sendo quem eles eram, assim como os nossos serão um dia, com todos os preconceitos que acreditamos não ter e com todas as ideias à frente do nosso tempo que não conseguimos reconhecer ainda.

Como você descreveria o gótico latino-americano e como trabalhou em seu conto "Varejeiras?"

O gótico latino-americano é uma expressão da literatura de terror voltada para questões de territorialidade que quem cresceu em terras colonizadas vai reconhecer sem dificuldade. Temos registros mais antigos como o trabalho da Juana Manuela Gorriti e a Júlia Lopes de Almeida, mas foi a partir do sucesso de Mariana Enriquez que esse subgênero ganhou uma dimensão muito maior e destacou uma onda de autoras que trabalham o horror como uma forma de ilustrar o terror político e colonial da America Latina com uma visão que destrincha o horror nas experiências corporais femininas e numa construção revista de figuras monstruosas. Além da própria Mariana Enriquez temos nomes como Dolores Reyes, Samantha Schweblin, Maria Fernanda Ampuero, Giovanna Rivero, Mónica Ojeda... São muitos. Varejeiras é um filhotinho desse subgênero, uma história que fala de violência contra a mulher numa comunidade confinada numa cidade pequena, isolada de qualquer lugar onde um pedido de socorro seria ouvido, um lugar onde a terra e as mulheres tem donos.

Nos conte como foi a produção de Varejeiras?

Para escrever Varejeiras eu contei com algumas referências do gótico latino, sendo as principais o conto "Ruínas", de Luisa Montenegro, e o conto As Coisas Que Perdemos No Fogo, da Mariana Enriquez. Foi uma história que não tive muita dificuldade para escrever por ter um tema delimitado no começo (verão) o que me ajuda a reduzir as ideias até pegar a certa para desenvolver. Já ouvi muitos comentários sobre Varejeiras trazer um ar de familiaridade com imagens bastante comuns, bastante brasileiras no texto, como revistas da Avon, ventiladores estralando, potes de margarina reaproveitados e isso e isso é influência dos contos da Jarid Arraes em Redemoinho Em Dia Quente. Foi um conto que começou pelo final: eu enxergava uma cidade fantasma coberta de moscas, turistas passando naquele lugar quente e fedorento e se perguntando onde estava todo mundo. A partir daí, foi construir (e descobrir) a história de destruição de Sucuri. O resultado e a repercussão me surpreende até hoje, confesso, pois não o achei um conto muito impressionante quando terminei de escrever, mas sinto que chega em muita gente, expõe muitas violências sutis das quais devíamos falar mais e sempre faz com que leitoras reconheçam situações de abuso que não reconheciam antes. Tenho bastante orgulho desse trabalho quando vejo o que ele se tornou.

Arte de vitrine e entrevista por Filipo Brazilliano
Revisão de texto por Maurylia Loureiro 

💬

Se você é escritor(a) e gostaria de ter um conto resenhado em nosso site, envie email para portalcataprisma@gmail.com

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem