Resenha: A Visagem do Ovo, de Danilo Heitor

 Em parceria com Cíntia Alves (@lunaccan), o Portal Cataprisma traz a vocês a resenha de A Visagem do Ovo, um conto de Danilo Heitor (@Kadjomar) publicado na edição 13 da revista Subtextos.


"Geronima roçava a terra mais por teimosia", inicia Danilo Heitor, sem cerimônia, e desvela a ambientação de sua história já nos primeiros segundos de leitura, concedendo ao leitor o vislumbre do solo árido que o aguarda logo adiante e do trabalho árduo de quem dele tenta extrair um mirrado sustento, sem melhores ou maiores opções. Além da ação inicial da personagem, a presença do termo "visagem", no título, típico de determinadas regiões brasileiras, colabora com a alusão aos cenários mais secos de locais que enfrentam, no chão e no tempo, inclementes desafios à subsistência de seus habitantes. Dito isto, se faz devidamente instaurado o clima da leitura a seguir.

Partimos então de Gerônima, esbaforida, inutilmente roçando a  terra, sob o sol a pino de meio dia - um cenário tenaz, apesar de amargamente convencional. Neste ponto, como quem narra empolgante fofoca, eu diria "até aí tudo bem", embora pouco bem, não fosse o surreal incidente subsequente: A Visagem do Ovo. Sim, e quem de nós poderia criticar Gerônima por nomear "visagem" um trambolho oval recém brotado do chão, bem ali, sem mais, minando água tão naturalmente como o Sol nasce e se põe todos os dias? Em tempo, se fez razoável a presença de quem lhe pudesse confirmar a veracidade do fenômeno diante das vistas, assim, outros personagens são convocados à medida que a interação com o Ovo evolui até o desembarque de seu incomum tripulante que, singularmente trajado, apresenta um curioso recado cifrado em notas musicais. Logo, mais tripulantes e vizinhos aderem ao grupo, conduzindo o enredo a seu animadíssimo desfecho.

Parafraseando Mário de Andrade, eu nem sei se isso é mesmo uma resenha, dada a quantidade de definições que o termo ganha dia a dia. Fato é que, costumo expor algumas impressões minhas dentro destes textos, além do que, também me é usual formular opiniões logo a partir de uma primeira leitura de quaisquer contos, contudo, com A Visagem do Ovo foi um tanto diferente. O conto de Danilo Heitor naturalmente foi encaminhado ao território das obras que me demandam uma segunda ou terceira passada, do que não reclamo, muito pelo contrário, me rendeu instigantes questões: Seriam os visitantes mensageiros de um futuro longínquo, responsáveis por alertar sobre o destino do sertão (virar mar), ou seriam eles seres alienígenas? Se terráqueos, viveriam sobre ou sob a superfície terrestre? De onde diabos veio tanta água? 

É bem verdade que me sinto menos culpada sabendo que outros leitores levantam indagações parecidas, sem chegar à conclusão alguma, assim como eu, e me parece ser a ausência de respostas parte integrante e crucial do fascínio sobre este conto. No mais, creio que eventuais questões somente podem ser respondidas pelos próprios viajantes, aí o jeito é passar um café, chamar o filho de Luís e pedir que ele traga a sanfona.

"O Sertão vai virar mar", cantam e dançam, ainda muito depois, em memória da incomum visita que lhes pressagiou alegria em forma de música e de muita (muita) água. 

Quer conhecer o autor Danilo Heitor?

Danilo tem 40 anos e é geógrafo, anarquista e corinthiano. Publicou um livro de contos, "Consigo", em 2021, pela Editora Primata, e uma noveleta de ficção,  “Todos”, pela editora Escambau, em 2022. Tem contos publicados em algumas coletâneas.



Quando decidiu seguir o caminho da escrita?

Eu escrevo desde criança, sempre gostei de escrever. É uma forma de processar o mundo, de me entender, de dizer pra mim mesmo e pros outros o que eu sinto. Na juventude pensei em ser escritor, mas depois a vida foi acontecendo e isso acabou ficando em segundo plano. Aí veio a pandemia, e me fez escrever mais que nunca. Nessa época conheci as comunidades de escrita independentes (Fantástika, Mafagafo, Escambau) e foi através delas que a ideia de publicar um livro voltou a estar em primeiro plano. Em 2021 lancei meu primeiro livro, e agora em 2023 está pra sair o terceiro (de ficção, ano passado lancei outros dois de não ficção).

Quais dificuldades encontrou em sua jornada enquanto autor e como as superou?

Encontrei todas aquelas que escritores independentes encontram: falta de experiência, de grana, de lugares para publicar, de conhecer os caminhos. Não superei todas elas, mas os avanços que tive foram todos na base do coletivo, de conhecer pessoas e comunidades e de trocar com elas. Minha escrita e minha visão sobre a escrita e o mercado literário mudaram muito nos últimos três anos.

Quais genêros você trabalha e quais temáticas são recorrentes em suas narrativas?

Eu sempre fui um cronista, só em 2020 passei a escrever contos com mais frequência. Hoje, estou tentando escrever romances, mas ainda tenho dificuldades em estruturar narrativas mais longas, atravessadas aqui e ali pela ficção especulativa (principalmente a ficção científica, a distopia e a utopia). Meus dois últimos livros são novelas (ou romances curtos, depende de quem classifica). Em termos de movimentos, gosto bastante do realismo mágico, do afrofuturismo e do solarpunk.

Cidade (e vida urbana), futuros, tecnologia, conflitos sociais, relações humanas são os temas mais recorrentes. Ultimamente tenho tocado bastante também no tema da masculinidade também.

Como foi a sua experiência de produzir A Visagem do Ovo e qual leitura faz do resultado?

“A visagem do ovo” saiu de um amigo secreto da comunidade do Escambau. O pedido da pessoa era por um conto em que pessoas voltassem do futuro para avisar que o sertão realmente ia virar mar. A partir disso imaginei a história, com a ideia de um objeto estranho surgindo na roça de uma mulher no sertão. O desenvolvimento aconteceu imaginando as reações possíveis dela e das pessoas ao redor a esse surgimento. Em termos de pesquisa, eu diria que fiz mais consultas a colegas mais próximos da realidade sertaneja, o resto foram referências ou homenagens a personagens, tradições e à cultura do Nordeste e do Norte (embora inicialmente tenha imaginado a história no sertão nordestino, incorporei alguns elementos nortistas que faziam sentido na história, como a ideia de “visagem”). Em termos de resultado, eu gostei bastante, principalmente pelo conto possibilitar várias interpretações sobre os visitantes, que não necessariamente vieram do futuro, e sobre onde a história se passa — com o aquecimento global, secura e falta d’água cada vez mais deixam de ser um problema exclusivo do sertão nordestino. Gosto de deixar coisas em aberto para quem lê imaginar o que quiser.

Que tipo de publico se atrai pelas histórias que produz?

Eu acho que escrevo para um público mais adulto e que se interessa em olhar para o mundo de uma perspectiva crítica, porque quase sempre acabo trazendo tensões sociais e humanas nas histórias. Já pensei em escrever histórias infantis, tenho até roteiros, mas nunca saíram, quem sabe um dia? Atualmente, acredito que quem se interessa por ficção científica, conflitos humanos, futuros distópicos e/ou utópicos pode gostar das minhas histórias. Sobre o que atrai, uma pessoa que costuma me ler disse uma vez que meu forte são as cenas cotidianas, os chamados “pedaços de vida”, ou seja, narrativas que envolvem situações comuns a quem vive na cidade, que trazem identificação para a pessoa leitora. Acho que isso é consequência da minha relação com a escrita, de sempre ter tido na escrita uma válvula de escape para as coisas que vivo. Muitas coisas nas minhas histórias são inspiradas em vivências minhas ou de pessoas ao meu redor — mas acho que isso é comum a toda pessoa que escreve.

Como foi a experiência com a revista Subtextos?

Foi ótima! A Mari (@Mariane_Lima_) é uma editora excelente, cirúrgica, e a seleção é muito honesta e transparente. Já tive dois textos publicados lá, sou um apoiador regular da revista e acho que ela tem menos destaque do que merece no mundo literário independente brasileiro. Vale demais ler as outras edições, tem contos muito bons em todas elas, de pessoas contemporâneas, vivas, com quem dá inclusive pra trocar ideia depois. E além da revista a Mari oferece outros serviços editoriais, pra quem procura leitura crítica, orientação pra carreira. Recomendo muito!

Arte de vitrine e entrevista por Filipo Brazilliano

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