A Galinha do Terceiro andar
A oviposição, a estimação, as propriedades antiescorpiônicas, sim; mas acima de tudo, a pose, a beleza, a coragem. Tais são os méritos da galinha. Seus deméritos estão na boca do povo, assim como o ovo está em sua cloaca: as fezes fedorentas, ao contrário da dos cavalos e bois, herbais e aromáticas; a necessidade do galo, que canta cedo e briga sempre; e supostas falhas de comportamento, mais presentes nos detratores da galinha do que no bicho em si. Nunca vi mães mais zelosas que as galinhas, nem animais mais valentes, que enfrentam cães, gansos, e mesmo o bípede implume que é o ser humano. E convenhamos: criticar o bichinho por seu comportamento reprodutivo é baixo astral.
Este foi um pequeno exercício para situar uma ave tão simbólica. Temo que com o processo de urbanização tal animalzinho seja esquecido por muitos.
— Cocó!
Mas não por mim. Meu café-da-manhã foi interrompido pela chegada da protagonista desta história: a galinha. Preta, marrom e vermelha, mais patética do que inspiradora, lá estava ela, na sacada onde gosto de fumar. Cacarejava e ia de lá para cá, não andando, mas — vejam vocês — mancando.
— Cocó!
Senti pelo animalzinho. Seu andar, claudicante e determinado, me fez pensar em mim mesmo, o menisco estourado, as chuteiras penduradas.
— Como você subiu até aqui? — perguntei. Estávamos em um prédio: a Torre Formaggio, o mais moderno do Jardim Aquarius.
A galinha, evidentemente, não respondeu. Nem com “cocó” ou algum outro galicismo. Abri a porta da sacada, e ela não fugiu de mim, permanecia em sua rota, talvez procurando insetos ou matos extirpados pela marcha inexorável da modernidade.
A cada passo, a pata direita amolecida, notava uma pontada de dor em seus olhos. Talvez já fosse idosa, talvez fosse um tombo. Nada que lhe subtraísse a beleza, a diversidade dos corpos é mágica. Decidi criar uma bengala para ela, de material atóxico, flexível: uma antiga espátula importada, adaptada para prender-se a seu corpinho de franga. Combinaria com minha própria bengala, de um alumínio modesto, mas com design europeu.
Alegrava os meus dias, a galinha: pensei em dar-lhe um nome, mas como só existia uma em minha vida, permaneceu sendo A Galinha. Era um ser fascinante, existindo a seu modo. Comeu minha samambaia, sujou meu tapete belga, dividiu comigo o milho de minha pipoca e os meus dias todos. E tudo estava bem.
Mas nossa pacata convivência foi interrompida. O síndico, enxerido como são todos os síndicos, escreveu uma carta. Uma denúncia, anônima como é do feitio dos covardes, alertou-o de que havia criação em um dos apartamentos. Não de artes, projetos, de uma solução para o aquecimento global, mas criação de bichos, animais, como se aqui fosse roça, e não uma metrópole. Dizia que os condôminos notaram algo. “A galinha do terceiro andar” , rabiscou. Descreveu-a: preta, marrom e vermelha, e apoiada em uma bengala.
De início, pensei no significado poético da expressão, a esfinge, com suas charadas, sabe? “Decifra-me ou te devoro”. Quem anda em quatro patas durante a manhã, duas, à tarde, e três, à noite? Quem anda os três andares? O ser humano, talvez; mas, além de nós, havia também A Galinha, nossa colega de segundo, e em meu caso, também de terceiro andar. Auspicioso! Então deduzi que o apelido devia ser por ela estar aqui no terceiro piso do prédio.
Olhei em seu olho, pois não seria possível olhar nos dois, dada a natureza ocular das aves. Jamais faria como sugerira o síndico: “Bote esse bicho na panela, ou ao menos, dê pro porteiro comer”.
Eu precisaria de toda a coragem do mundo. Despedi-me d’A Galinha, e dei a ela um jantar digno de seu maior momento: couve orgânica. Quando eu estava pronto, ergui-a sobre minha cabeça, fui até a sacada, e olhei para o horizonte azul. Contei até três, fechei meus olhos e joguei.
— Cocó!
Quando abri meus olhos, lá estava ela: voava, sim, ou tentava seu melhor para isto. Suas asas, musculosas e ágeis, espancavam o vento. Ao invés de se estatelar no chão — como não pensei que isso poderia me dar problema? — voava A Galinha, quase planando, indo na direção de outra sacada, a do condomínio La Mer de Paris. A bengala já não estava mais lá e seu pouso, forçado como foi, revelou que não era mais necessária. No outro prédio, na sacada de um apartamento do segundo andar, A Galinha ciscava e chutava. E eu não sabia como retomar minha vida.
Quem te escreve?
Benjamim Franco é escritor independente e professor de história na rede publica. Possui textos publicados em diversas revistas, e uma autopublicação: O espírito da batata e outras histórias (2022). Seus contos, em sua maioria, carregam humor e ironia.
Para encabeçar essa entrevista me conta um pouco sobre quem é a pessoa por de trás de A Galinha do Terceiro Andar e o que pretende através da sua arte? Eu brinco que sou do Vale do Paraíba (do Sul...), entre Rio e São Paulo, pois nasci em Barra do Piraí, no lado fluminense, e moro em Tremembé, no lado paulista. Passei praticamente minha vida inteira indo e voltando, e acho que isso me marcou. Sou professor de História há poucos meses. Trabalhei por mais de 15 anos como técnico em informática. Ainda não me acostumei com a mudança, mas é mais vivo e divertido (e cansativo...)
Com a minha escrita, pretendo fazer algo de diferente, acima de tudo pra me expressar de um jeito indireto. A graça da literatura é ser um espaço de liberdade.
Me fale sobre seu envolvimento com a literatura. Como tem sido sua trajetória no cenário?
Comecei tarde na literatura. Sempre tive caderninhos, ganhei concurso de poesia, redação, na escola, mas só comecei a fazer um esforço consciente na escrita após os 25. Fui músico frustrado, parei de desenhar quando entrei naquela fase da "vergonha" da adolescência... a graça de escrever é que é um hobby silencioso e portátil. Qualquer caderno serve, se você trabalha com computador dá pra escrever num notepad sem chamar atenção.
Gosto de escrever para editais e chamadas, pois é um processo que, além de dar um lastro de qualidade pro seu texto, ajuda a fazer o processo não ser tão autocentrado. Tenho autocrítica o suficiente pra saber que ninguém está interessado em me ler reclamando da vida... É importante aprender a lidar com públicos diferentes, demandas diferentes. Participar de concursos é bom pois ajuda a criar esse traquejo.
Minhas primeiras publicações foram em 2021. Tive a felicidade de ser aprovado na Jamburana Literária, com meu texto Dona Laura, Dona Soraya. É um conto — ou crônica — sobre duas senhoras que se "conhecem de vista". Algo bem “de interior.” Logo depois, fui publicado pela Revista Pretérita, em uma edição temática sobre corpos d ' água. Escrevi a história de Annie Edson Taylor, que foi a primeira pessoa a descer as cataratas do Niágara em um barril – igual no Pica-Pau. Ficção histórica é muito legal, mas é difícil…
Minha dificuldade principal foi começar. Dar a cara a tapa é difícil. Tenho a sorte de ter feito vários amigos pela escrita. Faço parte de um grupo, os Flickers, que surgiu entre edições do Nanowrimo, o desafio de escrever o primeiro esboço de um livro em um mês. Bati a meta algumas vezes, mas só serviu de prática, além das amizades pra vida. O que você destacaria de característico em sua própria literatura? E como foi o processo de concepção de A Galinha do Terceiro Andar? Gosto de escrever coisas divertidas, e de procurar perspectivas diferentes. A maior parte dos meus textos tem um quê de humor, ou no mínimo, de ironia. Quero que minhas histórias valham o tempo e o esforço de quem lê.
O conto A galinha do Terceiro Andar foi feito como parte de um desafio do grupo dos Escambanautas, da editora Escambau. É uma equipe muito boa, que sempre realiza desafios temáticos, leituras coletivas e grupos de estudo. No caso desse desafio, o título era fixo: restava aos participantes inventar uma historinha digna do nome. Moro em um lugar em que as pessoas tem criação, em que dá pra ouvir o galo cantar, e literalmente desvio de galinhas para ir trabalhar. Minha cidade está começando a ter prédios residenciais, mas nas cidades vizinhas, isso já é uma realidade. Alguns deles são cheios de um suposto requinte... não precisei inventar esse conflito.