Nem Todas as Belas Têm o Mesmo Fim, de Sandra de Lima

Em parceria com Monique Bonomini (@moniquebonomini), o Portal Cataprisma traz uma resenha de  Nem Todas as Belas têm o mesmo fim, escrito pela autora Sandra de Lima (@sandradelima.storyteller).



O Problema da Privada

(um texto de Monique Bonomini)

A arte reflete seu tempo, mas o que fazer diante da inegável constatação de que somos uma sociedade que tem dificuldade de encarar a própria privada? A questão do trabalho doméstico e da forma com ele é visto, como uma atividade inferior, de menor valor, geralmente relegado à responsabilidade de uma mulher, da qual se supõe, ou pior, se espera, um menor grau de instrução e uma grande passividade ou capacidade de sujeição, escancara a dificuldade/resistência de uma sociedade em lidar com a própria sujeira.

Em Calibã e a Bruxa, Silvia Federici revela como as sociedades na transição do feudalismo para o capitalismo se apropriaram da capacidade reprodutiva das mulheres e assentaram suas bases no trabalho não remunerado delas, mistificando o ambiente doméstico como o seu natural e o serviço de cuidado como intrínseco ao gênero feminino. Aliado a este processo, no Brasil, o sistema escravagista foi inerente à colonização, e logo à fundação da sociedade, tendo o país recebido o primeiro navio de escravizados em 1535 para um regime que duraria por mais de 300 anos, o que deixou marcas profundas na forma como as classes dominantes se relacionam com os trabalhadores e pessoas oriundas de classes menos privilegiadas.

Em Nem todas as Belas têm o mesmo fim, Sandra de Lima conta a história de uma família composta de um Juiz de Direito, sua esposa e os dois filhos bem educados do casal que moram numa casa cuidada por Bela, uma menina pobre que deixou o sertão rumo a cidade em busca de trabalho e estudo. Entretanto, Bela é aprisionada pela patroa fútil e controladora, que a pretexto de protegê-la do mundo, a mantém refém dos serviços domésticos para os quais fora contratada, embora não receba pagamento nenhum.

Esta é uma história comum, terrivelmente banal, que já se acostumou a ver senhorinhas condenadas ad eternum ao quartinho da empregada, anexo comum nas construções desenhadas pela arquitetura brasileira. O que comove, porém, são os diálogos travados ora entre os filhos e os pais revelando a compreensão de que existe algo tenebroso na relação da família com Bela, mas para quem o conforto fala mais alto fazendo que suas denúncias, pseudo-progressistas, caiam no vazio sem extrapolam as quatro paredes do luxuoso apartamento; ora entre Bela e o porteiro, que refletem a inconformidade e a busca por formas de resistir à opressão. O porteiro é o contato com o exterior que resta para Bela, após perder a mãe e Carminha, a mulher que lhe arrumou o trabalho, ele é quem faz o elo de Bela com o mundo além da cozinha.

A obra dramatúrgica tem o apelo incrível de descrever os cenários e entradas com riqueza em privilégio da montagem, então, observar a movimentação das personagens pela história, seu gestual, a disposição dos ambientes permite ao leitor um envolvimento completo com a leitura dolorosa, mas necessária deste livro, que, para completo deleite de quem lê, tem dois finais.

Um livro com crítica social tão pungente é incômodo porque nos obriga a refletir sobre qual o papel desempenhamos na encenação social desenhada pela autora, mas de outro lado não nos deixa esquecer de personagens da nossa História recente, como uma das primeiras vítimas da Covid-19 no Brasil, a empregada doméstica de 63 anos que contraiu o vírus da patroa que voltou infectada da Itália e não dispensou a funcionária de “caráter essencial”, de acordo com a classificação do governo brasileiro. Essencial para uma sociedade que tem dificuldade de encarar a privada e lidar com a própria sujeira. Leitura imprescindível.

Ainda sobre o assunto, recomendo a leitura do ensaio de Patrícia Baldez, Uma festa danada, que se debruça no estudo de como uma das categorias mais fundamentais para a compreensão do trabalho e da economia no Brasil escancara as raízes e os efeitos da desigualdade gritante que impera na sociedade brasileira.


 Tête-à-tête com a autora Sandra de Lima




Sandra de Lima é professora universitária aposentada. Começou a carreira literária em 2022 aos 57 anos. Primeiro lugar no Concurso Literário Nacional "Ernestina Remusat Rennó", e uma das dez vencedoras VI Concurso Internacional de Poesias Contos e Crônicas do Jornal de Fato. Brumadinho. Participa do Coletivo Escreviventes e publicou seu primeiro livro de ficção aos 58 anos de idade. Nem todas as Belas têm o mesmo fim, 2023, editora Caroá, está disponível em e-book na Amazon. Encontre a autora no Instagram @sandradelima.storyteller.


   Me conte um pouco sobre seu envolvimento com a literatura?

Bom, vamos lá. Meu primeiro contato com a literatura foi como leitora, ainda criança. Não sei como minha paixão começou, porque tenho a impressão que nasceu comigo. Junto com a paixão pela literatura  veio a paixão pela televisão, principalmente pelo jornalismo. Com apenas 7 anos eu queria ser jornalista. Aos 10 anos de idade ganhei um concurso de redação na escola em que estudava. Percebi que além de ler, tinha paixão pela escrita. Escrevi minha primeira dramaturgia aos 12 anos, e a encenamos na escola. Escrevi meu primeiro livro aos dezessete. Não gostei. Não lembro como perdi os originais. Sonhava em ser jornalista e escritora. Mas, a vida tem seus caprichos e me distanciei da literatura por quase 30 anos.

Nunca deixei de escrever: foram roteiros, artigos científicos, campanhas publicitárias. Então, veio a aposentadoria, a pandemia, e eu pude enfim, voltar a escrever ficção. Voltei a estudar literatura: cursos rápidos, leitura teórica e técnica, grupos de estudo, de leitura. Escrever, escrever e escrever.

Através da minha arte quero poder expressar os meus incômodos, os sentimentos e emoções que me atravessam, que atravessam as mulheres da minha geração (particularmente). Mulheres que ainda nasceram em um regime forte de opressão patriarcal. Quero expressar minha indignação com relação as muitas mazelas das quais fui testemunha nesse país, como no caso da exploração da mão de obra barata no ambiente doméstico, das portas fechadas dos lares sagrados das famílias brasileiras. Não escrevo autobiografia, ao contrário, busco na observação do cotidiano as injustiças, as dores, e amargores dos grupos minoritários, das mulheres exploraras, abusadas.

   Quais obras você já produziu e o que discute em cada uma delas?

Publiquei meu primeiro livro de ficção (storyteller) em 2008. A Encantadora de Gente. Como Relações Públicas pode fazer a diferença para o seu negócio. A história de uma RP que é contratada por uma empresa e lá precisa resolver uma série de desafios. Usei a técnica da storyteller para ensinar RP na prática. Foi um sucesso. O primeiro livro a usar as técnicas da ficção para ensinar uma disciplina.

Meu segundo livro Piedade, amor, piedade é um livro de contos em que eu apresento histórias de mulheres, suas dores, amores, contradições. Foi finalista do Prêmio de Literatura Hermilo Borba 2022. Ao final de 2023 lancei minha primeira Dramaturgia fruto de um curso de Dramaturgia da Fundação de Arte de São Caetano. 2022. Percebo que minha voz está em todos esses trabalhos, apesar das diferentes linguagens. Creio que minha evolução ocorreu na técnica que uso em cada um dos trabalhos. Tenho tentando aprimorar minha escrita, sem perder minha essência.

Como foi a concepção da obra Nem Todas as Belas Têm o Mesmo Fim?

Nem todas as belas têm o mesmo fim foi uma obra concebida durante um curso de qualificação da Fundação de Artes de São Caetano, mas a ideia surgiu de um conto que eu havia escrito anteriormente. A escravização do trabalho doméstico no Brasil sempre foi um grande incômodo para mim. Então, eu resolvi escrever um peça de teatro que mostrasse a hipocrisia de quem explora o trabalho doméstico como se fosse um favor que estivesse fazendo àquelas mulheres. Pesquisei bastante sobre a realidade brasileira, sobre o perfil das meninas e mulheres escravizadas, como essa escravização ocorria normalmente, e fui minerando as cenas, sob a orientação dos professores e dramaturgos: Rodrigo Veloso e Camila Damasceno.

O primeiro passo foi compartilhar com alguns companheiros e companheiras a dramaturgia finalizada e escutar suas sugestões preciosas, inclusive do companheiro Renato Gontijo que escreveu o Posfácio. Depois de publicada, tenho recebido feedbacks importantes e o que mais me deixa realizada é perceber que as leitoras e leitores são tocados pelo trabalho.

O próximo passo é buscar produzir a peça. Mas, isso são cenas para o próximo capítulo (risos).

Arte de vitrine e entrevista por Filipo Brazilliano

Resenha por Monique Bonomini

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